Segui obrigatoriamente pela parte baixa da vila até o ponto de ônibus, com o sexto sentido a me avisar de que não sairia incólume até o fim do trajeto. Precisava pagar as contas, e antes mesmo que pudesse estar atento aos movimentos locais, já havia dois sujeitos preparados para a abordagem. Graças a Deus, pensei. Tenho algum dinheiro. Ao menos, sairei ileso. Uma das figuras mancava muito, parecendo esforçar-se para caminhar. Talvez, meu receio fosse apenas impressão. Como alguém pensaria em assaltar nestas condições? Deveria aprender a controlar minha neurose, pensei. Mas, não fazia ideia do que me esperava. Surgiram das vielas mais quatro caras armados com revólver, faca e porrete. Pra que isso tudo? Abordaram-me próximo ao primeiro canto escuro onde poderiam agir. Pegaram-me pelo braço. “Calma aí, calma aí!”. Foi inútil. No primeiro tropeço, um tapa. Um telefone, empurrando o ar em meu ouvido. O zunido e a dor acionaram meu instinto de sobrevivência. Quis correr, mas fui jogado contra uma parede, em meio a socos e palavrões.
— Aí, feladaputa! Tu vai apanhar, safado!
— Peraí, caramba! Que que tá pegando? É dinheiro, poxa? Não precisa disso, não, cara?
— Que dinheiro, seu corno! Safado! - Mais um soco, e a interrogação ficara maior que o medo.
— Calma, meu! O que foi que eu te fiz?
— Você, feladaputa! Você mesmo! Tu não é dono do bicho?! Então! Eu jurei que ia te pegar, zé povinho!
— Que bicho, meu?! Do que que você tá falando?
— Disso aqui, seu porra! Ó! - Pegou-me pelos cabelos, quase esfregando minha cara na trilha preta de pontos costurados em sua perna direita. A perna esquerda ainda enfaixada na altura da panturrilha parecia esconder situação muito pior. Uma das mãos também estava igualmente remendada e vermelha ainda de mercúrio-cromo.
— O que que eu tenho com isso, cara? Não tô sabendo!
— Não tá? Isso foi o que aquele cachorro feladaputa fez ni mim, esquemão! Aquele desgraçado comeu um pedaço da minha perna e tive que tirar carne da bunda pra encher o lugar, tá entendendo?! Olha bem, seu bosta, que eu vou fazer o mesmo contigo! Ainda tô teno que tomar uma dúzia de injeção na barriga por causa daquela porra! Cê sabe o que é isso?! Qué que eu faço agora hein? Fala pra mim!
— Calma aí, cara! Como é que foi isso?
— O quê? Vai dizer que não sabe?! Safado! Fica esperto! Você escondeu o bicho, né?! Mas, cê tá fudido, cara! Eu vô matar ele. Se eu não puder matar, vou matar você!
A esta altura eu já estava gelado. Seria o meu dia? Ainda não. Uma vizinha que escutou a tudo, reconheceu minha voz. Moradora antiga, apareceu dissimuladamente, junto com outras pessoas.
— Dá licença. Será que dá pra gente passar?
Intimidado pela presença de testemunhas, meu algoz abriu caminho.
— Vaza, safado! Vaza! Não vai ser hoje, não! Fica na tua, cara! Tá dado o recado.
Não me levaram nada. Retornei rapidamente por onde vim até minha casa. Não é bom abusar da sorte. Continuava perplexo com o ocorrido, menos pela violência a mim desferida do que pelas razões apresentadas para tal vilania. Mas, ainda permanecia em minha garganta o sabor adocicado da ironia contida nos fatos.
Não se precipite, caro leitor! Peço-lhe o regalo de vossa atenção para o desenrolar desta história macabra. Não se trata de um conto policial, nem da constatação cínica do mundo-cão que nos cerca atualmente. Acha pouco ou trivial o que até agora relatei? Não duvido, posto que todos estamos acostumados a este tipo de situação. Basta ler os jornais, é o que me diriam, se pudessem. Mas, se a vida se torna previsível vez por outra, a morte nos revela surpresas. Sempre! Saibam que há um lado sombrio que se esconde nos meandros da realidade. Algo muito mais terrível e intangível, intocado pela fleuma mau caráter que nos protege a alma dos sentimentos incômodos. Um terror inalienável, irrecusável, que nos eriça os cabelos e nos remete aos pavores mais ancestrais. Convido-lhe a encará-lo, se puder.
Permita-me colocar minha história em seu devido lugar.
Modestamente, minha casa está incrustada na periferia de São Paulo. Não há luxo ou sofisticação. Remete-nos há um tempo quase perdido da vida cosmopolita. Construída na esquina de um quarteirão há quase quarenta anos, ocupa um terreno duplo sobre colina ampla da mal planejada vila em que moro. Não me questione por negar-lhe a exata localização. De que importa? Visite algum bairro de periferia da zona leste, norte, sul, oeste, enfim, são todos iguais na verticalidade dos terrenos e na desorganização, mesmo que regulamentados. Por sorte, fomos os primeiros a chegar por este recanto da cidade. O terreno é plano, embora este se erga uns quatro metros acima do nível da rua. Como um palco, visível a quem passa e observatório da vida externa aos que percorrem por dentro de seus muros inúteis. Cercada por um variado pomar, o típico lar proletário esconde-se por entre as árvores com certo grau de privacidade. Quem dele se aproxima é quase sempre visto antes de enxergar a quem atende à porta. Como guardiões, fruteiras de bom tamanho oferecem-nos a discrição de suas sombras e purificam com bons aromas o ar que adentra a moradia. Contornam de fio a pavio o terreno, sombreando a horta e o jardim. Uma típica casa da vovó. Não poderia ser diferente. Pertencia à minha mãe, matriarca de oito filhos, netos e da memória do marido, meu pai, falecido há tempos. Minha família viu o bairro crescer, ou melhor, inchar, passando de um recanto simples do cinturão verde da cidade, para o amontoado de gente, em conflito ininterrupto de valores e mentalidades. Vimos a vila degradar-se, crescer para baixo, às margens dos córregos, tendo como planejamento apenas o intento de quem pretende cercar-se do escudo humano empobrecido e dele tirar proveito para empreendimentos digamos, alternativos.
Não há mais espaço para antigos e pacatos moradores. Destes, os poucos que sobraram em meio ao caos, escondem-se e vivem como podem, por pura falta de opção. É o nosso caso. Há seis anos o diagnóstico de demência (pomposamente chamada de mal de Alzheimer), acometeu minha mãe. Desde então, todos os filhos, moradores ou não da sede familiar, desdobram-se dividindo o fardo pesado da doença, sofrendo cada qual um pouco por vez, a fim de dar à nossa mãe o amparo necessário neste período de sua vida. Como o caçula, que sou, senti-me responsável por auxiliar minha irmã mais velha que ali também reside, juntamente com um primo, irmão de adoção desde a sua adolescência.
Foi justamente nesta fase pesada que as tintas escuras do terror começaram a ressaltar os contornos deste burgo neo-medieval. Nada podemos fazer, se não nos for conveniente aderir à nova ordem que surge nestes tempos terríveis. Apenas nos esconder, aguardar a passagem (há de passar), e defender-nos de todas as formas.
Do alto de nossa inepta fortaleza, assistimos atônitos ao espetáculo proporcionado por revoadas de vampiros, ataques de feras desumanizadas, transformadas em vultos pela neblina vitoriana que recai sobre o fundo de vale que contorna nosso quarteirão. A floresta próxima, última reserva aos espíritos elementais, acuada pela selva de tijolos alaranjados expostos nas encostas, produz a nuvem fria que acolhe aos pós-tísicos destruidores da boemia poética. Legiões de estripadores agora decepam cabeças e abrem ventres sob as bênçãos da omissão. Só o alvoroço desvairado diferencia a penumbra do momento presente da depressão de tempos não tão longínquos. A decadência não tem nação nem época, saibam disso! Tudo se assemelha à era dos monstros românticos que povoam nosso inconsciente. Meros contos da carochinha, se comparados ao bestiário contemporâneo.
Na noite em que tudo começou, estávamos todos em casa, resignados com o subentendido toque de recolher, quando as criaturas se agitam ao escurecer ainda mais ousadas e incontroláveis. Chegavam mesmo assim, em visita inesperada, meu irmão com esposa e dois filhos pequenos. Vinham atenciosamente oferecer algum préstimo à minha mãe, já à beira do abismo da memória, esquecendo-se, vez por outra, até da sua própria identidade. Faziam-no à pulso. Não era prudente estar ali àquelas horas. Muito arriscado para quem não pretende passar por abordagem furtiva, ainda mais com crianças. Mas, era o tempo que lhes sobrava.
Como sempre, os primeiros a receberem as visitas foram os cães. Os queridos e destemidos guardinhas do terreno, avisando-nos de antemão que alguém se aproximava. Não que fosse eficaz. Mas, dava-nos um certo conforto psicológico diante de nosso total descontrole da situação. Tuca, uma mestiça de pastor, fiel e relativamente agressiva, era a primeira a dar o sinal. Seguia seu estrondo um delicado maltês, rejeitado por alguma “desalma” medíocre e acolhido por minha família. Este, quase não fazia barulho, mas sentia-se o fiel esposo da cadela três vezes maior do que ele, obrigando-se a protegê-la desnecessariamente. Seu nome, bem apropriado era Esnobe. Em função do caráter agitado de Tuca, preferimos mantê-la sob a corrente até a saída de meu irmão, a fim de evitar acidentes com as crianças pequenas. Ficou na casinha de alvenaria olhando a rua, nossa fiel soldado, rastreando por cima quem ali passava com natural curiosidade e sem nenhum risco a transeuntes. Por dentro da casa, o muro lhe parecia baixo, permitindo apoiar-se nele pra olhar quem por ali passasse.
A família reuniu-se na cozinha. O trabalho, as crianças, o clima, uma piada nova... Tudo seria bom assunto para fugir da rotina. Assim, ganhávamos fôlego numa noite agradável e aconchegante.
A campainha tocou freneticamente dezenas de vezes. Sempre que isso ocorria, o coração acompanhava o ritmo do ding-dong irritante. Uma síndrome pavloviana se manifestava: tremores, sustos, uma sequência de ai-meu-Deus ecoando pela casa.
— Alguém fique com a mamãe! Não deixem as crianças saírem! - ordenava eu, como um sargento, tentando já minimizar a surpresa prenunciada pelo som desesperado da campainha. O que seria? Tiro? Facada? Atropelamento? Chacina? Quem seria o desgraçado da vez? E sempre, com fé inabalável, pensávamos estar imunes ao miasma de violência que nos cercava.
Corri até a porta de entrada e já pude identificar a silhueta nervosa de uma senhora baixinha, com as mãos na cabeça, saltitando de um lado para outro.
— Óia! Vem aqui, vem! Ai, Senhor! Vem aqui, meu filho! – berrava, antes que eu pudesse me aproximar.
— Qué que aconteceu?
— Vem cá! Vem ver o que fizeram! Fica calmo, tá? - Como se a retórica ajudasse em algo.
Abri o portão e contornei parte do muro, ainda mais ansioso com os passinhos curtos da vizinha, se apoiando trêmula, pálida. Ao me aproximar, embora enxergasse claramente, meu cérebro recusava-se a decodificar a cena. Levou alguns segundos até que pudesse definir os contornos e a morbidez dantesca do maior espetáculo que o mal até então, caprichosamente, havia me preparado. “Mas, o que é isto, meu Deus!”
Diante de meus olhar incrédulo, uma massa sangrenta de carne retorcia-se dependurada no muro. Pulava, esquivando-se da aspereza do reboco cortante diretamente nos músculos esfolados. Pobre Tuca. Não acreditaria que fosse ela, não tivesse restado em sua cabeça a única parte de pele grudada ao corpo. O restante foi cortado na altura da coleira e puxado com violência, expondo-lhe até mesmo os nervos das pernas e os ossos da calda. Uma parte ainda pendia como um trapo de uma das patas. O restante fora feito em pequenos pedaços e se espalhava pela calçada afora. O choque que senti ao vê-la naquele estado oscilou entre a perda total de forças e o impulso frenético de tentar socorrê-la. Estava plenamente viva e em sofrimento agudo. Fora dependurada no muro pela corrente e nada pôde fazer contra o agressor. Sequer pôde latir, ganir. A coleira a enforcava, mas a expressão silenciosa de sofrimento em sua cara inocente fazia-me sentir uma faca entrando por meu corpo. Seus olhos revirando à minha procura, desesperados em busca de uma socorro, encharcados de lágrimas, quase me matavam . Mesmo assim, percorri o caminho de volta até o quintal, tentando descoordenado desatar a corrente e descê-la até a rua. Gritei por meu primo, que prontamente contornara o muro a fim de ampará-la, também transtornado com a situação.
— Meu Deus! Coitada! O que vamos fazer?
— Vamos pro veterinário.
— Mas, assim? Ô, meu Deus! Não sobrou quase nada! Ela vai morrer! Ela vai morrer!
Enquanto decidíamos, o pobre animal mantinha-se em pé, forte que era, tremendo e puxando ar. Ganiu apenas quando tentei ajeitar-lhe desesperadamente o couro que lhe pendia. Mal podia cobrir-lhe uma das pernas. Curiosos insuportáveis começaram a se achegar. Alguns mal continham a crueldade dos pensamentos que lhes saíam pelos olhos sorridentes. Outros admiravam o horror, narrando o que viam como se fosse uma atração circense. Respirei fundo, mais indignado do que triste. A cada segundo a situação ficava mais insuportável.
— Como é que pode alguém fazer isso! Isso é crime! Quem fez isso é um monstro! Quem fez? Alguém viu? Quem fez?!
Foi como dar um tiro para o alto. A pequena multidão se dispersara, sem que ninguém respondesse ao meu apelo. Claro! Covardes, isso sim é que são! Cruéis, todos! Se não viam nada nem quando se matava uma pessoa, que dirá um ato cometido contra um ser cuja inocência se revela muito superior a de qualquer um ali presente! Quem seria a besta de verdade, era o que minha raiva gritava naquele momento. Não havia muito tempo para resolver. A cadela sofria visivelmente. Tentei cobri-la com minha blusa. Mas, não permitiu que eu a tocasse. Minha mãe, que estava em casa, entretida com os netos e o filho, já dava sinais de que percebera algo. Fiquei atordoado com a possibilidade de que ela presenciasse a cena contra o pobre animal, querido por todos em casa e tão fiel... E as crianças? Oh, não! Não poderiam ver. Muito menos minha irmã, que amava a cachorra mais do que todos.
— Deixa que eu resolvo!
— Como é que é?
— Ela tá sofrendo, caramba! Não vai deixar a gente por a mão!
— O que você vai fazer?
— Segura aqui! Não tem jeito! É melhor assim.
Meu primo passou-me a corrente e correu até o quintal, voltando com uma pá.
— Ah, não!
— Como não? Os meninos vão ver, caramba! Anda logo!
— A gente leva ela... Ai, meu Deus!
— Chegando lá, vão sacrificar... ela não vai viver desse jeito!
— Ô, Vladimir! Que que tá acontecendo?
— Ai, meu Deus! Não é nada não, nada não! Vai logo, ela tá descendo!
Pedro, meu primo, correu até um barranco, um terreno baldio próximo, levando a cachorra até o local de seu sacrifício, antes que minha mãe chegasse, já ansiosa. Em suas condições, qual seria sua reação? Seguimos o impulso de proteção mútua. Ele parecia saber o que estava fazendo. Seria misericordioso. Sua vida no campo lhe concedera prática no abate. E poria um fim àquela situação.
Já com a semente da culpa obstruindo-me a garganta, tentava retornar à calma, inutilmente, a fim de responder ao inevitável interrogatório e acolher o desespero que recairia naquela casa. Não poderia ter sido diferente. Todos ficaram chocados com o que contei, mesmo tendo-lhes privado de maiores detalhes. Foi triste, muito triste. Mas, ao menos, pude poupar minha mãe e as crianças. Não saberiam o que realmente acontecera, nem teriam ideia da gravidade da situação. Isto porque, passado o susto inicial, uma saraivada de indagações massacrava nossas mentes sem descanso: qual teria sido o motivo para tamanha barbaridade? Estaríamos correndo perigo? Teria sido um recado? Prudente que era, meu irmão deve ter sido o primeiro a levantar tais questionamentos. Silenciou-se no momento, ciente de que não seria apropriado atemorizar ainda mais a todos. Contudo, prometeu ligar assim que chegasse em casa para conversar melhor, providenciando a retirada imediata de sua família daquele lugar, antes que o peso das horas aumentasse os riscos de seus retorno. Mesmo assim, não esquivou-se em retomar a possibilidade que por muitas vezes havia aventado sem receber muito eco:
— Acho que seria melhor vocês se mudarem daqui...
Ele tinha razão. Mas, não era este o tema que nos consumia naquele momento. Meu primo e eu estávamos arrasados. Mesmo assim, não parecia nada diante da dor de minha irmã. Velávamos nossas tristezas, nossos medos, reunidos na sala silenciosa. Somente o bater do relógio de pêndulo insistia em demarcar ainda mais o parar do tempo em meio ao clima reflexivo que tomara a todos. Condicionado à rotina, ainda pude ouvir nitidamente a cadela arranhando o fundo de sua casinha, como fazia quando por algum motivo era mantida acorrentada. Não admitia ficar presa à noite toda. Por volta das vinte e duas horas, não nos dava sossego até que a soltássemos da corrente. Olhei o relógio, que marcava exatamente este horário. Sorri comigo por dentro, com saudades...
Uma segunda vez, suas unhas pareciam arrancar lascas de madeira do assoalho da casinha. Meu primo ergueu a cabeça, chamando-me a atenção. Seus olhos arregalados, pareciam incrédulos. Teria ele ouvido também? Procurei pelo Esnobe. Depois de ter presenciado sua companheirinha em situação tão traumática, correu para debaixo da mesa de centro e não mais saiu de lá por aquela noite. Estava conosco, não poderia ser ele a fazer aquele barulho. Ignorei meu primo. Era só impressão. Estava louco de remorso pelo que fez, coitado.
Alguns segundos a mais e o som dos arranhões se repetiram, ainda mais fortes e mais prolongados. Era minha mente, torturando-me também, pensei. Que absurda aquela situação!
— Nossa.... parece até que estou ouvindo a Tuca arranhar a casinha... tadinha. - Meu coração parecia que ia saltar pela boca. Depois da constatação de minha irmã, não tive dúvidas de que não era alucinação ou, que ao menos não seria só eu a ficar maluco. Olhei de volta para o meu primo e, de moreno que era, parecia uma vela. Retornou-me com expressão incrédula e quase defensiva, já que a pergunta que lhe dirigi parecia inevitável.
— Pedro, tem certeza de que fez direito? - indaguei de modo cifrado.
— Claro, claro! Não tem jeito! Acabou. - quisera eu que tivesse razão. Sua resposta veio acompanhada de mais uma sessão de arranhões vindos do quintal, seguido de um indiscutível tilintar da corrente movimentando-se em frente à casinha de alvenaria.
—Mas...
— Nossa! Será que ela está no quintal? - minha irmã, já horrorizada, fitou-me com aquele ar pouco indulgente. Devolvi o olhar a Pedro, que me respondera com o gestual característico de quem não queria acreditar no óbvio. Coçou a cabeça, escondeu o rosto e decretou à queima-roupa:
— Vai lá ver!
— Eu?!
— Eu não aguento se for. - fiquei com pena e, ao mesmo tempo indignado com tamanha incompetência! Ele levou uma pá, demorou-se no local... e não fez nada?! Imaginei a cadela ainda naquele estado agonizante, voltando para o quintal do mesmo jeito em que fora levada. Se quiser fazer bem feito, faça você mesmo! Nunca um lugar comum me foi tão apropriado. Levantei-me azeitado de raiva, decidido a resolver de uma vez aquela situação surreal. Abri a porta e chamei-a pelo nome. Não apareceu. Fui até em frente à casinha. Nada. Agachei-me para olhar lá dentro...
— Tuca... Tuca... - pensei que eu mesmo não resistiria à cena.
Um pavor tomou-me, de forma que meus joelhos mesmo dobrados, tremiam. Reparei, relutante, bem dentro da casa. Estava vazia. Um suspiro... um alívio. Estaria entre o pomar, claro. Chamei novamente por seu nome. Desta vez, desgraçadamente, obtive resposta. O bufar quente em minha nuca, o peso de sua pata em minhas costas sentenciaram-me a encarar novamente o horror daquela imagem. Estava atrás de mim. Cheirando-me, ainda aos trapos. Foi preciso juntar as forças para virar-me. O arfar sedento continuava, parecendo-me implorar um carinho que talvez eu não tivesse coragem para oferecer-lhe. Mesmo assim meu espírito mantinha-se consternado pelo sofrimento solitário que o pobre bicho passava. Depois desses fatos, tenho certeza de que o sofrimento, por definição, é sempre solitário. Não se divide uma dor, por mais solidária que seja a companhia que tivermos. Forcei-me a virar o rosto e encarar o estado de minha pobre amiga. Não fazia ideia do quanto o pavor pode ser amplificado diante do inexplicável. Congelei-me, quando minha visão traiu a todos os outros sentidos. Acredite, caro leitor: não havia nada ali!
Minha irmã, colocou o rosto pra fora da janela. “Ela está aí?”, inquiriu-me, agoniada. Não sabia o que lhe dizer. As plantas sacudindo, formando um trajeto, como se algo corresse por entre elas, pouparam-me de responder. “Ela está ali! Ela tá ali!”, ficavam todos afirmando meio incrédulos, vendo a balbúrdia no terreno, escutando os passos na calçada em torno da casa, mas nada podiam confirmar. O som arfante percorria o quintal, passava diante de todos causando arrepios, enquanto o outro cachorro, histérico, latia de dentro de casa, sem coragem de chegar à porta.
Diante do inexplicável nada restava a fazer senão trabalhar com os fatos. Estaríamos todos loucos? Nossas mentes exaustas pelo estresse estariam pregando peças? A todos? Quando tudo nos parece estranho, faz-se necessário embarcar na estranheza, compreendendo as novas regras do jogo que se impõem e buscando nosso lugar, antes de tentar racionalizar sobre os fatos. Como Alice, atropelada pela ilógica realidade de seus sonhos, viu nos horrores à sua volta um maravilhoso mundo de impossibilidades para as quais tinha que oferecer respostas se quisesse sobreviver.
— Você enterrou ela? - perguntei, num esforço de compreensão diante do inexplicável.
— Ahn?! Não, não. Está garoando, o terreno é escuro e cheio de cacos de vidro. Tive medo de me machucar.
— Então, só pode ser isso.
— Você tá doido, Vladimir? - perguntou-me Pedro, desacreditado de minha dedução.
—E você? Está? - não esperei a resposta. Peguei a pá e segui até o terreno.
Estava lá, estirada num canto. A cabeça fraturada com competência. Porém esperava que seu fim fosse-lhe um tanto mais digno do que ser refugada num barranco qualquer. Cães não têm alma. Têm? Não se ressentem do mal que lhe fazem. Como seres inferiores, estão aqui a nosso serviço. A serviço da felicidade dos seres superiores, pura e simplesmente. Se tais afirmações ainda contornam a incredulidade de quem percorre estas linhas, peço-lhe que faça o caminho contrário. Quantas vezes em nossas vidas nos deparamos com seres incapazes de ver em nós algo além do que instrumentos de seu bem-estar, capazes de refugar a vida alheia se assim lhe convier. Dê-me ao menos o direito à duvida. Meu senso de integridade depende disso. E quem sabe, também, o teu!
Enterrei-a com o máximo carinho que poderia lhe oferecer naquele momento. Não tive pressa. E não me envergonho disso. Colocaria uma cruz em sua cova se pudesse! Que outro tipo de pessoa acharia ridícula tal consternação?
Voltei para casa, com uma sensação de dever cumprido. De remissão. Os barulhos, embora amenizados, não cessaram totalmente na primeira noite. Prosseguiram por dias os passos, os buracos feitos no quintal... Cada osso, cada brinquedo por ela enterrado amanheceu exposto no solo revirado. Tinha certeza de que não teria sido o outro cachorro o autor da façanha. Esnobe passou a dormir na varanda, sem nunca mais se aproximar da antiga casinha que dividia com sua parceira. Aos poucos foram sumindo os sinais daquela presença, silenciando-se após uma semana. Infelizmente, não fora suficiente para acalmar meu coração. Mantive-me preocupado, em vigília constante. Enquanto não nos mudássemos daquele lugar maldito, não teria mais uma boa noite de sono. Não posso negar. Se antes a preocupação com a segurança de minha família já me fazia inverter por vezes meu relógio biológico, agora tornara-se uma neurose, uma ideia fixa incorporada à minha personalidade, assim como as enormes manchas negras que circundam meus olhos sempre sedentos por fecharem-se. Não lhes permito isso.
As coisas ficaram mais tristes ainda quando, dias depois do ocorrido, o belo e solitário maltês, também sucumbira. Há indícios de que tenha sido infeccioso o mal que o acometera. Contudo, sem maiores razões, um ataque inusitado, como epilepsia, o derrubara. Seu corpo descoordenado jogou-se no chão com os olhos negros estufados de pavor, sem que houvesse tempo de socorro. Parecia ter levado um susto muito grande. Talvez ainda em consequência do que presenciara naquela noite terrível. Talvez... Ficamos sem guardinhas e ainda, mais temerosos. Era preciso providenciar nossa saída antes que aquela onda negra atingisse a um de nós. Colocamos logo depois, a casa à venda.
Fiquei eu, portanto, fazendo às vezes de vigia noturno, reduzido a um cachorro acuado, espreitando por entre as árvores, observando a tudo que se passava em torno, noite após noite, com uma certeza quase absoluta de que algo ainda estaria por acontecer. Estava ciente de que nossa segurança dependeria única e exclusivamente de nós. Não há a quem recorrer. A cada carro oficial parado na praça em frente, uma desilusão sempre terminava com as expectativas. Mãos sorrateiras esgueiravam-se carregadas de papel, conversas amigáveis e quase profissionais se deixavam ouvir em plena luz do dia. Entre zumbis, lobisomens e vampiros, a harmonia quase sempre se mantinha, rompendo-se vez por outra em brigas de poder e insubmissões dos mais fracos. O ataque era sempre iminente e o recado já havia sido dado. Aquele lugar não mais nos pertencia.
Certa noite, quando o descanso se tornara inadiável, decidi cochilar na sala, acalentado pela luz frenética da TV. Não era possível relaxar totalmente, embora o corpo implorasse. Eis que a prova cabal do realismo de meus temores surgiu, naquela noite enevoada e fria.
— Sai daí, caralho! Tô te falando! Sai daí! - os gritos pareciam ritmados pela luz vermelha sobre o carro de polícia. A casa estava cercada. Olhei pela fresta do vitrô da sala, quase vomitando meu coração. Havia um homem no quintal. A neblina densa e a escuridão impediam-me de ver maiores detalhes. Escondeu-se atrás de uma das árvores e percebi o brilho metálico em suas mãos. Corri apavorado até o quarto de minha mãe. Se ela acordasse, talvez abrisse a janela, como faria uma criança curiosa e sem noção do perigo. Felizmente, dormia o sono dos remédios. Os outros, logicamente não se atreveram a sair dos quartos. Em meio à vistoria interna, no entanto, começara lá fora, uma série de sons incompreensíveis. Só pude definir o que berrava o rapaz em meio à balbúrdia horrorizante.
— Aaaahhhh, caralho!!!! Porra! Sai! Saaai!!! - chegou a desferir dois tiros contra o que lhe exasperava. - Ahhhh! Pelamordedeus! Ajuda! Ajuda! - os sons não cessavam. O jardim sacudia num emaranhado de rosnados diabólicos. Pude ver o desespero do infeliz e sua fuga frenética do quintal, mancando de uma das pernas e saltando de volta nas garras da polícia, num esforço para livrar-se do que lhe atacava. Fora preso, logicamente, sem parar de gritar e soltando um rosário de palavrões. Ouvi também as risadas dos agentes e as palavras de escárnio. “Perdeu, ladrão! Perdeu! Foi invadir o quintal dos outros e tomou no cu, né, safado?! Os outros sons, bem, não pude definir direito. Apenas seguiam o ritmo de pancadas e gritos de “ai”, “calmaê”. Por fim, desapareceram de lá, seguindo a noite num silêncio funéreo, paradisíaco!
Acostumados com a terrível rotina do inesperado, permaneci mais uma vez insone, carregado da energia estressante que nos impede de desfrutar dos raros momentos de relaxamento. Nenhum barulho a mais naquela madrugada fria e estranha. Apenas o estrondoso silêncio da expectativa pelo pior.
Na manhã seguinte os sinais deixados nas folhagens não deixavam dúvida da violência do episódio. Folhas manchadas de sangue, muito sangue, pedaços estranhos de carne que eu não me atreveria a tocar, a vegetação pisoteada e, por fim, os cartuchos dos projéteis desferidos pela “vítima” contra aquilo que lhe atacava ferozmente.
Passaram-se quase dois meses sem que pudéssemos ter certeza do que exatamente acontecera naquela noite. Submetidos à regra de ouro da sobrevivência, nada falamos, nada perguntamos nem a nós mesmos. Se por alguma razão furtiva, já nos haviam infringido tamanho terror, que dirá se déssemos algum motivo. Mas, em meio à bandalheira, nunca estamos seguros. E a razão que move o mundo é implacável com aqueles que não a decifram, ou não lhe creditam o status de verdade irrefutável. Lembremos, caro leitor, do trivial início desta história. Foi naquela emboscada que o inusitado revelou-se digno de apreciação. Em meio às agressões e ameaças, os pontos longínquos que nos impedem de ver o conjunto, finalmente uniram-se numa imagem clara e surreal.
— Que bicho, meu?! Do que que você tá falando?
— Disso aqui, seu porra! Ó! - a costura em sua perna, forçou-me a puxar pela memória. Eu conhecia aquela voz, aquele grito esganiçado. É claro! Era o infeliz que foi preso após ser escorraçado de meu quintal.
Você escondeu o bicho! Mas, cê tá fudido, cara! Eu vô matar ele. Se eu não puder matar, vou matar você! - Fiquei atônito diante do que acabara de vislumbrar. Bicho?! Matá-lo?! Outra vez?! Esforcei-me para esconder o sorriso de escárnio e a expressão de forra em meu semblante. Há muito não me sentia tão satisfeito. Embora o bom senso me fizesse duvidar de minha imaginação, estava ali, diante de meus olhos, o estrago feito no couro daquele boçal inútil. O terrível episódio que se passara em nossas vidas, finalmente teve um final. Não um final feliz. Algo muito melhor e bem mais palatável. A ironia dos fatos encheu-me do sentimento reconfortante de justiça.
Voltei às pressas para casa, não tanto por medo, mas ansioso por relatar a inacreditável novidade. Contei à minha irmã o ocorrido, receoso de lhe apresentar qualquer conclusão inaceitável e, finalmente, ter de assumir algum grau de loucura. Contudo, a expressão que vi em seu rosto fora a síntese de tudo que eu mesmo sentira a instantes atrás.
— Mas, não pegaram o filho da puta?
— Acho que sim. Mas, já foi liberado. Eles não passam muito tempo na cadeia. Você sabe como são as coisas.
— É. Fazer o quê? Tome cuidado.
— Pode deixar.
Nada mais falamos. Apenas, desfrutamos do alento da feliz possibilidade de, agora não estarmos mais tão indefesos, seja de que maneira for. Ela não quis prolongar-se, talvez pelo mesmo motivo que eu. Nossa autoimagem não resistiria a tamanha sandice.
Abri a loja, tranquilamente naquele dia. Trabalhei até o fim do expediente com a sensação há muito perdida de que o equilíbrio das coisas havia sido minimamente retomado.
Quando retornei, ao final da tarde, senti o ambiente mais leve. Apesar dos cuidados exigidos por minha mãe, ainda assim, não se apagava a suavidade da brisa fresca e o perfume das árvores florindo naquele começo de primavera. Mas, algo de inexplicável, mais enebriante que a brisa perfumada, invadia nossos pulmões, desobstruindo-nos a respiração. Um sentimento bom, porém deslocado, de bem-estar e segurança o qual realmente não poderíamos nos dar o direito de desfrutar. Não era possível relaxar daquela forma, pensei eu. Talvez minha irmã não quisesse ver que, realmente, nada havia mudado. Será?
Em frente à casinha de alvenaria aparentemente desabitada - monumento ao ensejo macabro de uma vida inocente - estava lá, como se nada de terrível tivesse ocorrido nestes dias: um pote de ração abarrotado até a boca e a vasilha d'água recém lavada e cheia. Nada precisava ser dito.
Com o tempo, nos esquecemos da ideia da mudança. Permanecemos no mesmo lugar, auxiliados pelas sombras protetoras do fiel arvoredo, que nos permite a tudo ver sem sermos vistos, tendo agora o reforço inesperado das vítimas do bestiário liberto. Muito mais terríveis e ameaçadoras que o inimigo à espreita. Quem se atreveria a enfrentá-las? Que venham todos!
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Professora Psicopedagoga Simonne Machado