Todos os brasileiros sabem que o português é a língua majoritária e oficial do Brasil, e muitos sabem que ele é derivado do latim. Mas a maioria desconhece a história do idioma no país e da sua relação com as diversas outras línguas que aqui se falavam antes da chegada de Pedro Álvares Cabral e com as que vieram durante e depois da colonização.
Segundo o lingüista Aryon Rodrigues, do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília, quando o Brasil foi descoberto pelos portugueses, havia mais de 1.000 línguas no país, faladas por índios de diversas etnias (veja artigo nesta edição). As numerosas etnias da família Jê haviam migrado para o interior, e só conheceriam o contato com os colonizadores no final do século XVII. Outras, como a dos Aruak e dos Karib, permaneceriam isoladas por ainda mais tempo, especialmente as amazônicas.
A colonização portuguesa começou gradativamente pelo litoral, a partir de 1532, com a instituição das capitanias hereditárias. Nesse período, diversas comunidades da família Tupi e Guarani habitavam o litoral brasileiro entre a Bahia e o Rio de Janeiro. Havia entre elas uma grande proximidade cultural e linguística. Para estabelecer uma comunicação com os nativos, os portugueses foram aprendendo os dialetos e idiomas indígenas. A partir do tupinambá, falado pelos grupos mais abertos ao contato com os colonizadores, criou-se uma língua geral comum a índios e não-índios. Ela foi estudada e documentada pelos jesuítas para a catequização dos povos indígenas. Em 1595, o padre José de Anchieta a registrou em sua Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Essa língua geral derivada do tupinambá foi a primeira influência recebida pelo idioma dos portugueses no Brasil.
Outro contato que influenciou a língua portuguesa na América foi com as línguas dos negros africanos trazidos como escravos para o país. O tráfico de escravos começou com a introdução do cultivo da cana-de-açúcar na capitania de São Vicente (que corresponde a parte do atual estado de São Paulo), no Recôncavo Baiano e em Pernambuco, no começo da colonização. Ele se intensificou no século XVII, espalhando-se por todas as regiões ocupadas pelos portugueses. Os escravos acabaram aprendendo o português, para se comunicar com os seus senhores. O lingüista Mattoso Camara Jr., em História e Estrutura da Língua Portuguesa, afirma que, no Brasil, os escravos chegaram a desenvolver um português crioulo, tal como ocorreu nas colônias africanas (Veja artigo de Hildo Honório do Couto, sobre crioulização do português).
Camara Jr. diz ainda que os africanos também se adaptaram à língua geral de origem indígena, que continuava a ser a mais falada entre os colonos. "Um texto do padre Antonio Vieira, de 1694, diz que a língua que as famílias portuguesas falavam em São Paulo era a dos índios", afirma o pesquisador Jaqueson da Silva, aluno de pós-graduação em Teoria Literária na Unicamp. "E os filhos dessas famílias aprendiam o português na escola", completa.
O Marquês de Pombal instituiu o português como a língua oficial do Brasil. |
A essa altura, o português já havia tido a evolução natural que sofre toda língua no decorrer do tempo. As mudanças, porém, se deram de maneira distinta em Portugal e no Brasil. Paul Teyssier, em Histoire de la langue portugugaise, conta que no final do século XVIII, o brasileiro já aparece no teatro português como um personagem com peculiaridades em sua fala. Um exemplo que ele apresenta é generalização do uso da forma de tratamento que até hoje se mantém no Brasil, mas que em Portugal era empregada apenas familiarmente: o "você", redução de "voismicê", que por sua vez deriva de "vossa mercê". Além disso, quando Pombal decretou a obrigatoriedade do uso do português no Brasil, os falantes brasileiros já haviam incorporado diversas palavras de origem indígena e africana em seu vocabulário.
Muitos nomes de plantas, frutas e animais brasileiros têm origem no tupinambá. Alguns exemplos são abacaxi, araticum, buriti, caatinga, caju, capim, capivara, carnaúba, cipó, cupim, curió, ipê, imbuia, jaboticaba, jacarandá, mandacaru, mandioca, maracujá, piranha, quati, sucuri e tatu. A toponímia, ciência que estuda a origem dos nomes de lugares, também revela um grande número de palavras indígenas na fala do brasileiro: Aracaju, Avaí, Caraguatatuba, Guanabara, Guaporé, Jabaquara, Jacarépaguá, Jundiaí, Parati, Piracicaba, Tijuca, etc. A influência indígena também acabou propiciando a criação de expressões idiomáticas, como "andar na pindaíba" e "estar de tocaia", que são marcas linguísticas de uma cultura específica.
Os africanos do grupo banto e ioruba deixaram um legado próprio na cultura do nosso país. A culinária afro-brasileira tem o abará, o acarajé e o vatapá; e o candomblé tem orixá, exú, oxossi, iansã. O quimbundo, língua falada em Angola, emprestou ao português do Brasil palavras do vocabulário familiar, como caçula, cafuné, molambo e moleque. Termos que expressavam o modo de vida e as danças dos escravos, como senzala, maxixe e samba, também se incorporaram ao nosso léxico.
Certas comunidades africanas no Brasil, além de falarem o português, preservaram a sua língua de origem, que se mantém viva no país até os dias de hoje. É o caso dos habitantes do Cafundó, um bairro rural do município de Salto de Pirapora, no estado de São Paulo.
Alguns estudiosos afirmam que as influências não se restringiram apenas ao vocabulário. Jacques Raimundo, em O Elemento Afro-Negro na Língua Portuguesa, aponta algumas mudanças fonéticas, iniciadas na fala dos escravos, que ainda se mantêm em algumas variedades do português do Brasil: as vogais médias pretônicas "e" e "o" passam a ser pronunciadas como vogais altas, respectivamente "i" e "u" (mininu, nutiça); as vogais tônicas de palavras oxítonas terminadas em "s", mesmo as grafadas com "z", se tornam ditongos (atrais, mêis, vêis); a marca de terceira pessoa do plural, nos verbos do pretérito perfeito, se reduz a "o" (fizero, caíro, tocaro).
Em 1822, Jerónimo Soares Barbosa registrava em sua Grammatica Philosophica, uma peculiaridade sintática, originada na fala dos escravos, que até hoje é apontada como uma das distinções entre o português falado em Portugal e o que se fala no Brasil: a colocação de pronomes átonos antes dos verbos (mi deu, ti falô).
Após a independência do Brasil, o tráfico de escravos diminui, até cessar por volta de 1850. Muitos índios se miscigenaram e novos imigrantes europeus, como alemães e italianos, chegaram ao país. O novo contato do português brasileiro com outras línguas foi um dos fatores que gerou as diversas variedades regionais existentes hoje no Brasil.
Na segunda metade do século XIX, os autores do Romantismo tentam retratar em sua obra uma brasilidade que distingua a ex-colônia de Portugal. Além de exaltar a figura do índio, autores como José de Alencar trazem para a literatura a linguagem própria do brasileiro. O movimento modernista, no começo do século XX, retoma a idéia romântica de resgate das origens e construção de uma identidade própria, com projetos como a Gramatiquinha da Fala Brasileira, pensada por Mário de Andrade.
A discussão sobre as distinções entre a fala de Portugal e a do Brasil se mantêm até hoje. A nossa estrutura gramatical continua bem próxima do português europeu. O brasileiro incorporou empréstimos de termos não só das línguas indígenas e africanas, mas do francês, do espanhol, do italiano, do inglês. Mas a maior parte do nosso vocabulário é idêntica a do português europeu. As diferenças fonéticas são notáveis. E algumas distinções semânticas também se verificam em palavras como "estação" e "trem", que em Portugal são "gare" e "comboio". Para o lingüista brasileiro Mário Perini, professor convidado da Universidade do Mississipi, nos EUA, as mudanças na língua são naturais, e pode até ser que um dia a fala do brasileiro chegue a ser considerada um idioma distinto do português europeu . "É o que fatalmente acontece quando duas comunidades linguísticas se separam geograficamente", afirma Perini.
Professora Simone Calixto