domingo, 31 de maio de 2015

Vera Maria Ferrão Candau: DIFERENÇAS CULTURAIS, COTIDIANO ESCOLAR E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

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Currículo sem Fronteiras, v.11, n.2, pp.240-255, Jul/Dez 2011

Vera Maria Ferrão Candau Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro –
PUC-Rio
Brasil

DIFERENÇAS CULTURAIS, COTIDIANO ESCOLAR E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Resumo



Diferentes grupos sócio-culturais conquistam maior presença nos cenários públicos. As questões colocadas são múltiplas, visibilizadas principalmente pelos movimentos sociais, que denunciam injustiças, desigualdades e discriminações, reivindicando igualdade de acesso a bens e serviços e reconhecimento político e cultural.
No âmbito da educação as diferenças também se explicitam com cada vez maior força e desafiam visões e práticas profundamente arraigadas no cotidiano escolar. A cultura escolar dominante em nossas instituições educativas prioriza o comum, o uniforme, o homogêneo. Tendo presente esta problemática, este texto tem por objetivo analisar diferentes concepções de diferença presentes nas práticas pedagógicas, assim como, a partir de alguns resultados de pesquisas, identificar aspectos que permitam oferecer aos educadores e educadoras contribuições para trabalhar este tema no cotidiano escolar. Defende a posição de que as diferenças são constitutivas, intrínsecas às práticas educativas e atualmente é cada vez mais urgente reconhecê-las e valorizá-las na dinâmica de nossas escolas. Palavras-chave: Diferenças Culturais - Cotidiano Escolar – Didática - Formação de Educadores.

 1. Introdução

Diferentes grupos socioculturais conquistam maior presença nos cenários públicos, tanto no âmbito internacional como em diversos países do continente latino-americano e, especificamente, no nosso país. Tensões, conflitos, tentativas de diálogo e negociação se multiplicam. 
As diferenças culturais - étnicas, de gênero, orientação sexual, religiosas, entre outras – se manifestam em todas as suas cores, sons, ritos, saberes, sabores, crenças e outros modos de expressão. 
As questões colocadas são múltiplas, visibilizadas principalmente pelos movimentos sociais, que denunciam injustiças, desigualdades e discriminações, reivindicando igualdade de acesso a bens e serviços e reconhecimento político e cultural. 
No âmbito da educação também se explicitam cada vez com maior força e desafiam visões e práticas profundamente arraigadas no cotidiano escolar. 
A cultura escolar dominante em nossas instituições educativas, construída fundamentalmente a partir da matriz político-social e epistemológica da modernidade, prioriza o comum, o uniforme, o homogêneo, considerados como elementos constitutivos do universal. Nesta ótica, as diferenças são ignoradas ou consideradas um “problema” a resolver. Segundo Gimeno Sacristán (2001, p. 123-124): 

Uma das aspirações básicas do programa pro-diversidade nasce da rebelião ou da resistência às tendências homogeneizadoras provocadas pelas instituições modernas regidas pela pulsão de estender um projeto com fins de universalidade que, ao mesmo tempo, tende a provocar a submissão do que é diverso e contínuo “normalizando-o” e distribuindo-o em categorias próprias de algum tipo de classificação. Ordem e caos, unidade e diferença, inclusão e exclusão em educação são condições contraditórias da orientação moderna. E, se a ordem é o que mais nos ocupa, a ambivalência é o que mais nos preocupa. A modernidade abordou a diversidade de duas formas básicas: assimilando tudo que é diferente a padrões unitários ou “segregando-o” em categorias fora da “normalidade” dominante. 

Na reflexão pedagógica atual e, particularmente, da didática, âmbito no qual situo o presente trabalho, em vários debates dos quais tenho participado, a preocupação com as diferenças culturais é vista frequentemente como algo “externo”, recentemente incorporado a este campo, constituindo como um corpo estranho às suas preocupações e, de alguma forma, responsável por deslocar seu olhar para aspectos considerados não articulados ou fragilmente relacionados às questões nucleares que estruturam as práticas pedagógicas no cotidiano escolar. No entanto, defendo a posição de que a diferença é constitutiva, intrínseca às práticas educativas, “está no chão da escola”, como afirmou uma professora entrevistada em uma das pesquisas que desenvolvi (Candau,2008a), e atualmente está cada vez mais presente na consciência dos educadores e educadoras e integra o núcleo fundamental de sua estruturação/desestruturação. Ter presente a dimensão cultural é imprescindível para potenciar processos de aprendizagem mais significativos e produtivos para TODOS os alunos e alunas.

Para aprofundar nesta questão, parto da afirmação de que as questões relacionadas à diferença na educação não constituem um problema inédito, nem tampouco se pretende ignorar as importantes teorizações já construídas a esse respeito. Como afirma o próprio Gimeno Sacristán (2002, p.15), referindo-se a essa mesma discussão: “não convém anunciar esses problemas como sendo novos, nem lançá-los como moda, perdendo a memória e provocando descontinuidades nas lutas para mudar as escolas”.

Este texto tem por objetivo analisar diferentes concepções de diferença presentes nas práticas pedagógicas, assim como, a partir de alguns resultados de pesquisas, identificar aspectos que permitam oferecer aos educadores e educadoras contribuições para trabalhar este tema no cotidiano escolar.
Começo por apresentar algumas aproximações às questões relativas às diferenças nos processos educacionais, desenvolvidas através da própria evolução do pensamento pedagógico. Num segundo momento, situo a perspectiva intercultural, que fundamenta a perspectiva que adoto. Termino apresentando alguns dados de pesquisas recentemente realizadas pelo Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas (GECEC), que coordeno desde 1996 e que conta com o apoio do CNPQ, e tecendo breves considerações finais.

2. Diferenças e processos educacionais: diversas aproximações

A construção dos estados nacionais latino-americanos supôs um processo de homogeneização cultural em que a educação escolar exerceu um papel fundamental, tendo por função difundir e consolidar uma cultura comum de base eurocêntrica, silenciando ou invisibilizando vozes, saberes, cores, crenças e sensibilidades.
A conhecida pesquisadora argentina Emilia Ferreiro (2001) se expressa sobre esta questão e, referindo-se ao contexto latino-americano e à dificuldade da escola pública dos nossos países, desde o início de sua institucionalização, de trabalhar com as diferenças, afirma:

"A escola pública, gratuita e obrigatória do século XX é herdeira da do século anterior, encarregada de missões históricas de grande importância: criar um único povo, uma única nação, anulando as diferenças entre os cidadãos, considerados como iguais diante da lei. A tendência principal foi equiparar igualdade à homogeneidade. 
Se os cidadãos eram iguais diante da lei, a escola devia contribuir para gerar estes cidadãos, homogeneizando as crianças, independentemente de suas diferentes origens. Encarregada de homogeneizar, de igualar, esta escola mal podia apreciar as diferenças. Lutou não somente contra as diferenças de língua, mas também contra as diferenças dialetais da linguagem oral, contribuindo assim para gerar o mito de um único dialeto padrão para ter acesso à língua escrita".

E conclui:

É indispensável instrumentalizar didaticamente a escola para trabalhar com a diversidade. Nem a diversidade negada, nem a diversidade isolada, nem a diversidade simplesmente tolerada. Também não se trata da diversidade assumida como um mal necessário ou celebrada como um bem em si mesmo, sem assumir seu próprio dramatismo. Transformar a diversidade conhecida e reconhecida em uma vantagem pedagógica: este me parece ser o grande desafio do futuro (apud Lerner, 2007, p.7).

É possível identificar ao longo da história da educação, alguns marcos da construção do discurso sobre a diferença no campo pedagógico brasileiro (Candau e Leite, 2006).
Destaco, em primeiro lugar, de modo especial a partir da primeira metade do século XX, as contribuições de diversas vertentes da psicologia, assim como de movimentos como os da chamada escola nova e do ensino programado, para o tratamento desta questão. O referencial psicológico, tanto das teorias da aprendizagem quanto das contribuições da psicologia do desenvolvimento e da personalidade, exerceram, e continuam exercendo, forte impacto na formação dos educadores e educadoras. 

Nesta perspectiva, o termo diferença está em geral referido às características físicas, sensoriais, cognitivas e emocionais que particularizam e definem cada indivíduo. Diversidade de ritmos, de estilos cognitivos, de modos de aprender e traços de personalidade são considerados componentes dos processos de aprendizagem e a construção de estratégias pedagógicas que os levem em consideração são preocupações presentes entre os educadores e educadoras.

O movimento da escola nova investiu com força nesta direção e princípios como o da atividade, individualização e flexibilização de espaços e tempos configuraram diferentes projetos e iniciativas que nele se inspiram.
O foco estava no indivíduo e suas especificidades. Esta perspectiva ainda está muito presente no imaginário dos/as professores/as, principalmente dos que atuam nos primeiros anos do ensino fundamental. 

Também o ensino programado, tendo por base a psicologia behaviorista, principalmente nos anos 60 e 70, desenvolveu sequências de ensino-aprendizagem que respeitavam o ritmo de cada aluno/a e mesmo, na modalidade do ensino programado ramificado, oferecia caminhos diferenciados, de acordo com as respostas a cada unidade de aprendizagem proposta, para que cada um/a atingisse o comportamento final proposto.
Certamente estas tendências apresentam contribuições significativas para o desenvolvimento de processos de ensino-aprendizagem mais sensíveis às características peculiares de cada aluno/a. No entanto, a fato de se centrarem exclusivamente nos aspectos individuais de caráter psico afetivo e, em algumas vertentes como na baseada no behaviorismo, de modo muito redutivo, têm como base uma concepção de sujeito da aprendizagem muito limitada, não considerando dimensões como a sócio-histórica e cultural, que são praticamente ignoradas.
Quanto às contribuições da sociologia da educação, introduzem a discussão sobre as relações entre as variáveis socioeconômicas e os processos educacionais, concretamente sobre os determinantes do fracasso escolar. As diferenças de classe social adquirem neste contexto especial importância. Em relação com esta dimensão, as contribuições da chamada “nova sociologia da educação” inglesa, a partir dos anos 60, foram fundamentais. Segundo Moreira (2007, p.1).

Enquanto a tradição anterior da sociologia da educação britânica enfatizava relações macroestruturais, a NSE tendeu a focalizar contextos interacionais e seus conteúdos, discutindo o que se ensinava nas escolas e iluminando a base social do conhecimento escolar. Para os adeptos desta corrente, a análise das questões de acesso à escola e de distribuição da educação não podia ser separada da discussão da forma e do conteúdo do currículo, negligenciada nos estudos até então realizados.

No final da década de 70, começam a repercutir, no Brasil, as proposições desse movimento, mas Moreira (1999) localiza apenas no período entre 1988 e 1992, uma maior incidência de referências a abordagens filiadas à NSE, em artigos publicados no campo da educação.
Esta perspectiva permitiu ampliar o olhar sobre o cotidiano escolar, particularmente no que diz respeito às dimensões sociais e econômicas que incidem nos processos pedagógicos e na própria concepção do sujeito da aprendizagem, a partir de uma perspectiva critica de análise dos processos educacionais, privilegiando-se a categoria de classe social. No entanto, as abordagens fundamentadas em correntes da psicologia ou da sociologia, por mais distintas que sejam e se contraponham, trabalham as diferenças no horizonte de garantir a conquista dos mesmos resultados por todos os alunos e alunas. Neste sentido, as diferenças devem ser superadas e a homogeneização é o que se pretende alcançar. É importante mencionar também, mesmo de modo amplo, algumas das contribuições de Paulo Freire para o tema que nos ocupa, que inauguram uma nova perspectiva.. Pelo reconhecimento da relevância da dimensão cultural nos processos de alfabetização de adultos, superando assim uma visão puramente classista, e pelo método dialógico que propõe implementar nos processos educativos, pode-se considerar que seu pensamento já adiantava aspectos importantes do que hoje se configura como a perspectiva intercultural na educação. Segundo Gohn (2002, p.67),

Nos anos 90, Freire destaca ainda mais a dimensão cultural nos processos de transformação social e o papel da cultura no ato educacional. Além de reforçar seus argumentos em defesa de uma educação libertadora que respeite a cultura e a experiência anterior dos educandos, Freire alerta para as múltiplas dimensões da cultura, principalmente a cultura midiática. Ele chama atenção para o fato de que ela poderá despertar-nos para alguns temas geradores que o próprio saber escolar ignora, ou valoriza pouco, como a pobreza, a violência, etc. Destaca também que a mídia trabalha e explora a sensibilidade das pessoas e por isso consegue atrair e monopolizar as atenções. Seus livros escritos nos anos 90 – de estilo mais literário – revelam um pensador preocupado com o futuro da sociedade em que vivemos, dado o crescimento da violência, da intolerância e das desigualdades socioeconômicas. Ele destacará a importância da ética e de uma cultura da diversidade. O tema da identidade cultural ganha relevância na obra de Freire, assim como o da interculturalidade.

Através destas breves indicações o que busquei foi evidenciar que a questão das diferenças tem estado presente na reflexão pedagógica principalmente através de aproximações a partir de correntes da psicologia, em que o tema das diferenças individuais é privilegiado, e da ótica sociológica, em que as diferenças de classe social e outros determinantes socioeconômicos e seu impacto nos processos escolares são analisados. Esta constatação não supõe que as consequências destas perspectivas nas práticas pedagógicas tenham sido cada vez mais levadas em consideração. Quanto às contribuições de Paulo Freire, se desenvolveram de modo mais significativo no âmbito da educação não formal. Em geral, a cultura escolar continua fortemente marcada pela lógica da homogeneização e da uniformização das estratégias pedagógicas.

3. Diferenças culturais e processos educativos: incorporando a perspectiva intercultural 

Nos últimos anos, a discussão sobre as diferenças culturais nas práticas pedagógicas vem se afirmando. Nesta perspectiva, os primeiros aspectos que são necessários esclarecer se referem aos conceitos de cultura e diferença nos quais este trabalho se baseia. No que diz respeito ao sentido do termo cultura, certamente polissêmico e complexo, assumo a perspectiva privilegiada por Velho (1994, p.63) quando afirma: 

"Hoje em dia cultura faz parte do vocabulário básico das ciências humanas e sociais. O seu emprego distingue-se em relação ao senso comum no sentido que este dá às noções de homem culto e inculto. Assim como todos os homens em princípio interagem socialmente, participam sempre de um conjunto de crenças, valores, visões de mundo, redes de significado que definem a própria natureza humana. Por outro lado, cultura é um conceito que só existe a partir da constatação da diferença entre nós e os outros". 

Quanto à diferença, Silva (2000) propõe uma distinção entre diversidade e diferença que considero especialmente oportuna para expressar a abordagem em que situo a perspectiva intercultural:

Em geral, utiliza-se o termo [diversidade] para advogar uma política de tolerância e respeito entre as diferentes culturas. Ele tem, entretanto, pouca relevância teórica, sobretudo por seu evidente essencialismo cultural, trazendo implícita a ideia de que a diversidade está dada, que ela pré-existe aos processos sociais pelos quais - numa outra perspectiva - ela foi, antes de qualquer outra coisa, criada. Prefere-se, neste sentido, o conceito de “diferença”, por enfatizar o processo social de produção da diferença e da identidade, em suas conexões, sobretudo com relações de poder e autoridade. (p.44-45).

As diferenças são então concebidas como realidades sócio-históricas, em processo contínuo de construção-desconstrução-construção, dinâmicas, que se configuram nas relações sociais e estão atravessadas por questões de poder.
São constitutivas dos indivíduos e dos grupos sociais. Devem ser reconhecidas e valorizadas positivamente no que têm de marcas sempre dinâmicas de identidade, ao mesmo tempo em que combatidas as tendências a transformá-las em desigualdades, assim como a tornar os sujeitos a elas referidos objeto de preconceito e discriminação. Trabalhar as diferenças culturais constitui o foco central do multiculturalismo.

Situo a perspectiva intercultural no âmbito das posições multiculturais que classifico em três grandes abordagens: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo plural e o multiculturalismo interativo, também denominado interculturalidade. (Candau, 2009b)

A abordagem assimilacionista parte da afirmação de que vivemos numa sociedade multicultural, no sentido descritivo. Uma política assimilacionista - perspectiva prescritiva - vai favorecer que todos se integrem na sociedade e sejam incorporados à cultura hegemônica. No caso da educação, promove-se uma política de universalização da escolarização. Todos e todas são chamados a participar do sistema escolar, mas sem que se coloque em questão o caráter monocultural presente na sua dinâmica, tanto no que se refere aos conteúdos do currículo, quanto às relações entre os diferentes atores, às estratégias utilizadas nas salas de aula, aos valores privilegiados etc. 

Quanto ao multiculturalismo diferencialista ou, segundo Amartya Sen (2006), monocultura plural, esta abordagem parte da afirmação de que quando se enfatiza a assimilação termina-se por negar a diferença ou por silenciá-la. Propõe então colocar a ênfase no reconhecimento da diferença e, para promover a expressão das diversas identidades culturais presentes num determinado contexto, garantir espaços em que estas se possam expressar. Afirma-se que somente assim os diferentes grupos socioculturais poderão manter suas matrizes culturais de base. Algumas das posições nesta linha terminam por assumir uma visão essencialista da formação das identidades culturais. São então enfatizados o acesso a direitos sociais e econômicos e, ao mesmo tempo, privilegiada a formação de comunidades culturais consideradas „homogêneas‟ com suas próprias organizações – bairros, escolas, igrejas, clubes, associações etc.

Na prática, em muitas sociedades atuais terminou-se por favorecer a criação de verdadeiros apartheids sócioculturais. Estas duas posições, especialmente a primeira, são as mais frequentes nas sociedades em que vivemos. Algumas vezes convivem de maneira tensa e conflitiva. São elas que em geral são focalizadas nas polêmicas sobre a problemática multicultural. No entanto, me situo numa terceira perspectiva, que propõe um multiculturalismo aberto e interativo, que acentua a interculturalidade, por considerá-la a mais adequada para a construção de sociedades, democráticas e inclusivas, que articulem políticas de igualdade com políticas de identidade. (Candau, 2008b). 

Considero que uma primeira característica que a configura é a promoção deliberada da inter-relação entre diferentes sujeitos e grupos socioculturais presentes em uma determinada sociedade. Neste sentido, esta posição se situa em confronto com todas as visões diferencialistas, assim como com as perspectivas assimilacionistas. Por outro lado, rompe com uma visão essencialista das culturas e das identidades culturais. Concebe as culturas em contínuo processo de construção, desestabilização e reconstrução. Uma terceira característica está constituída pela afirmação de que nas sociedades em que vivemos os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de identidades abertas, em construção permanente, o que supõe que as culturas não são puras, nem estáticas.

A hibridização cultural é um elemento importante na dinâmica dos diferentes grupos socioculturais. A consciência dos mecanismos de poder que permeiam as relações culturais constitui outra característica desta perspectiva. As relações culturais não são relações idílicas, não são relações românticas, estão construídas na história, e, portanto, estão atravessadas por questões de poder e marcadas pelo preconceito e discriminação de determinados grupos socioculturais.

A perspectiva intercultural também favorece o diálogo entre diversos saberes e conhecimentos. Convém ter presente que há autores que empregam estes termos como sinônimos, enquanto outros os diferenciam e problematizam a relação entre eles. O que chamamos conhecimentos estaria constituído por conceitos, idéias e reflexões sistemáticas que guardam vínculos com as diferentes ciências. Estes conhecimentos tendem a ser considerados universais e científicos, assim como a apresentar um caráter monocultural.

Quanto aos saberes, são produções dos diferentes grupos socioculturais, estão referidos às suas práticas cotidianas, tradições e visões de mundo. São concebidos como particulares e assistemáticos.O  mais relevante, deixando aberta esta discussão, é considerar a existência de diferentes saberes e conhecimentos e descartar qualquer tentativa de hierarquizá-los. Neste sentido, a perspectiva intercultural procura estimular o diálogo entre os diferentes saberes e conhecimentos, trabalha a tensão entre universalismo e relativismo no plano epistemológico e ético, assumindo as tensões e conflitos que emergem deste debate. 

Uma última característica que gostaria de assinalar diz respeito ao fato de não desvincular as questões da diferença e da desigualdade presentes hoje de modo particularmente conflitivo, tanto no plano mundial quanto em cada sociedade. Trata-se de ter presente esta relação, complexa e que admite diferentes configurações em cada realidade, sem reduzir um pólo ao outro.

4. Diferenças culturais e práticas pedagógicas: o que dizem alguns estudos e pesquisas


Na última década o Grupo de Estudos Cotidiano, Educação e Culturas (GECEC) tem desenvolvido várias pesquisas que analisam diversas questões referidas às relações entre escola e cultura(s) (Candau,2007; 2009a).

São recorrentes nestes trabalhos as evidências empíricas da dificuldade se lidar nas práticas educativas com as diversas manifestações da diferença: de gênero, étnicas, de orientação sexual, geracional, sensório-motoras, cognitivas, entre outras. “Aqui são todos iguais”, é muito frequente os professores afirmarem quando se pergunta como lidam com as diferenças, para significar que os dispositivos pedagógicos mobilizados são padronizados e uniformes. 

Igualdade e diferença são vistas como contrapostas e não como dimensões que mutuamente se reclamam. No entanto, também as investigações realizadas têm identificado progressivamente uma maior sensibilidade para esta temática, mas traduzi-la nas práticas cotidianas continua sendo um grande desafio. Nesta perspectiva, farei referência a quatro trabalhos desenvolvidos nos últimos anos por integrantes do grupo de pesquisa acima referido, de diferentes tipos, que podem oferecer alguns subsídios para se avançar no tratamento pedagógico no âmbito escolar das diferenças culturais, tendo como horizonte a proposta já mencionada de Emilia Ferreiro (apud Lerner 2007, p.7) de “transformar a diversidade conhecida e reconhecida em uma vantagem pedagógica”.

Os dois primeiros foram realizados no contexto da pesquisa Ressignificando a Didática na perspectiva intercultural, desenvolvida no período de 2003 a 2006 (Candau, 2007).

A primeira pesquisa, realizado entre 2004 e 2005, teve por objetivo central analisar como a perspectiva multicultural estava sendo incorporada pelo campo da didática, na visão de seus próprios protagonistas, ou seja, professores, pesquisadores e estudiosos desta temática com amplo reconhecimento acadêmico (Candau e Koff, 2006). 

A partir da análise de vinte depoimentos, feitos por profissionais de diversas regiões do pais que expressaram durante as entrevistas uma forte identificação com a área e sua evolução, foi possível constatar como eles e elas estão percebendo, de um lado, as contribuições e os temas que emergem quando se pensa e se discute as relações entre Didática e multiculturalismo e, de outro lado, os riscos, mas também os desafios inerentes a essa temática.

Um primeiro aspecto a ressaltar dos depoimentos dos entrevistados, diz respeito ao reconhecimento do impacto da perspectiva multicultural no campo da didática, apesar de salientarem o seu aspecto ainda frágil e embrionário.

Várias contribuições se situam no sentido de problematizar a cultura escolar dominante nas nossas escolas, seu caráter monocultural, e enfrentar a questão das diferenças na ação educativa. Para alguns, apesar desta temática ter aparecido no campo da didática na segunda metade da década de 90, ainda é objeto de preocupação de poucos grupos, embora num movimento de afirmação.

Outros entrevistados observam que estas preocupações têm afetado mais o plano teórico do que a prática educativa. Na escola ou nos processos de ensino-aprendizagem em geral, sua presença é caracterizada como pontual. Ressaltam também que o multiculturalismo lida com um referencial teórico complexo e é necessário enfrentar a tensão entre teoria crítica, multiculturalismo e estudos culturais. São apontadas igualmente embora de modo disperso, contribuições da perspectiva multicultural como, por exemplo: mesmo considerando que há diferentes visões sobre a diferença, esta perspectiva pode ajudar a trabalhá-la no cotidiano escolar, assim como a compreender melhor os determinantes do fracasso escolar. 

Além disso, favorece a retomada da discussão sobre os conteúdos escolares, oferece elementos para se trabalhar questões como violência e disciplina, preconceito e discriminação, bem como desvela questões étnicas e de gênero presentes na escola, ajudando a “ver” e “lidar” com as diferenças presentes na sala de aula e, nesse sentido, ajuda a romper com o que Cortesão e Stoer (1999, p.56) chamam de daltonismo cultural. 

Outras contribuições estão associadas à possibilidade que essa perspectiva tem de despertar para questões relativas às diferentes linguagens presentes no cotidiano escolar, bem como de articular o social e o cultural.

Quanto à relação entre didática e multiculturalismo, assinalam alguns desafios como, por exemplo, a necessidade de romper com a ideia de que a diferença é um problema, uma vez que, no imaginário presente na cultura docente, a homogeneização seria um fator de facilitação do trabalho pedagógico.

Outro desafio está associado à busca de como trabalhar de modo mais efetivo a articulação entre as questões relativas às diferenças culturais e os chamados temas próprios da didática – planejamento, seleção de conteúdos, técnicas de ensino, avaliação etc.

Também se configura como uma questão especialmente desafiadora o relativismo cultural em suas relações com os conhecimentos e valores que a escola deve trabalhar e a tensão entre diferenças culturais e desigualdades sociais e, consequentemente, as buscas orientadas a promover processos de articulação entre igualdade e diferença e não de considerá-los como pólos contrapostos.

O segundo trabalho refere-se ao desenvolvimento pelo grupo de pesquisa, no segundo semestre de 2005, com caráter exploratório, da disciplina Didática Geral, obrigatória para o Curso de Pedagogia da PUC-Rio, instituição em que foi realizada a experiência, incorporando a perspectiva intercultural na sua concepção e dinâmica. (Candau e Leite, 2007).

Tratava-se de uma disciplina de sessenta horas de aulas presenciais, desenvolvidas durante um semestre letivo. Do ponto de vista metodológico, a disciplina foi estruturada em oficinas pedagógicas , por se considerar que esta estratégia poderia oferecer maiores possibilidades para o desenvolvimento coerente entre a perspectiva assumida teoricamente e as atividades propostas.

Cada oficina teve a duração de quatro horas, num total de quinze encontros.

A construção do curso exigiu muitas discussões e, semanalmente, a equipe analisava a experiência vivida e debatia as elaborações/reelaborações a serem realizadas, utilizando-se para tal um estilo investigativo inspirado na pesquisa-ação.

A experiência supôs enfrentar vários desafios e tensões e também foram muitas as conquistas. Assinalo alguns aspectos de especial relevância para o nosso objeto de reflexão: o fato de se tratar de uma perspectiva assumida por uma única disciplina mobilizou um contraste permanente com a abordagem dominante nas demais disciplinas do curso o que, se por uma parte contribuiu para o aprofundamento da perspectiva que se estava introduzindo, provocou também várias tensões, tanto do ponto de vista operacional – horário, presença, tarefas a cumprir, etc.-, como mais substantivas, referente ao próprio sentido da interculturalidade e as desestabilizações que provoca num curso de formação de professores.

Foi necessário permanentemente buscar articulações com os condicionamentos institucionais que definem datas, ritmos e modos, que nem sempre se justificavam tendo presente a perspectiva assumida.

Outros aspectos a assinalar dizem respeito à negociação permanente com o “ofício de aluno” (Perrenoud, 1997) já incorporado nas práticas universitárias, à luta contra o tempo, que rivalizava com as pretensões dialógicas e favorecia a imposição de uma narrativa única. No entanto, os diversos e complexos desafios enfrentados, reafirmaram a convicção do grupo sobre a relevância do caminho coletivamente construído. 

A experiência vivida exigiu uma contínua busca para trabalhar a coerência entre a perspectiva intercultural e a prática concreta da sala de aula. Foi possível também evidenciar a pouca produção da área de didática nesta perspectiva o que supôs, em vários momentos, a elaboração de diversos materiais -textos, vídeos, apresentações em PowerPoint etc.- para dar suporte à disciplina.

Uma questão revelou-se crucial: a importância desta perspectiva ser assumida como eixo de desenvolvimento do Curso de Pedagogia como um todo. Quanto ao terceiro trabalho ao qual farei referência, trata-se da tese de doutoramento de Claudia Hernandez Barreiros (2006), “Quando a diferença é motivo de tensão – um estudo de currículos praticados em classes iniciais do ensino fundamental”. 

Na pesquisa realizada, de inspiração etnográfica, a autora procurou conhecer e compreender de que forma o referencial teórico da diferença, trazido à escola e trabalhada em espaços de formação continuada das professoras, tinha sido incorporado nas práticas pedagógicas cotidianas de educadoras dos anos iniciais do ensino fundamental. Foi investigada uma escola da rede pública municipal do Rio de Janeiro, localizada no interior de uma grande favela-bairro. 

O estudo contou com observações de reuniões de planejamento e centros de estudos, aulas de quatro turmas e entrevistas com suas respectivas professoras, assim como com a diretora e a coordenadora pedagógica da escola.

A pesquisa constatou, uma vez mais, que a palavra diferença admite variados sentidos e que alguns deles de fato foram evidenciados na escola pesquisada, particularmente o que enfatiza o ponto de vista psicológico.

A perspectiva cultural somente apareceu explicitamente nos momentos de estudo do tema pelo grupo de docentes. Apesar desta limitação básica,

Barreiros procurou identificar diferentes estratégias pedagógicas que as professoras declararam em seus depoimentos utilizar para lidar com as diferenças na sala de aula, que podem ser agrupadas nas seguintes categorias:
 a) modos de se situar diante das questões relativas às diferenças: reconhecer que somos diferentes, não partir da igualdade, ter um olhar atencioso às crianças que mostram maiores necessidades, estar sensível ao que acontece, ao que emerge, pesquisar o caminho de aprendizagem de cada criança, usar a intuição;

b) trabalhar as relações interpessoais e a dinâmica do grupo, tais como: discutir os conflitos no grupo e valorizar o diálogo;

c) estratégias pedagógicas enfatizadas: trabalhar com diferentes linguagens, apostar no estudo/trabalho em grupos, dar visibilidade às produções dos/as alunos/as, empoderá-los/as, entre outras.

Especialmente a primeira estratégia proposta, de especial potencial para a construção de práticas pedagógicas atravessadas pela perspectiva intercultural, pois se trata de uma mudança de ótica: ter como ponto de partida de toda prática pedagógica o reconhecimento das diferenças. Certamente trata-se de outra maneira de olhar a prática pedagógica, que não é fácil e supõe desconstruir a perspectiva da homogeneização tão presente e configuradora da cultura escolar. 

O último trabalho que apresentarei se situa no contexto do projeto institucional de pesquisa “Multiculturalismo, Direitos Humanos e Educação: a tensão entre igualdade e diferença‟‟, desenvolvida pelo GECEC, de março de 2006 a fevereiro de 2009, com o apoio do CNPq (Candau, 2009 a). O objetivo principal da referida pesquisa foi analisar as tensões entre igualdade e diferença nas práticas sociais e educacionais, com especial ênfase na identificação das representações dos/as professores/a do ensino fundamental e na caracterização dos dispositivos pedagógicos por eles mobilizados no cotidiano escolar para trabalhar esta problemática. Nesta perspectiva, as principais estratégias de pesquisa utilizadas foram entrevistas individuais realizadas com vinte e dois docentes do ensino fundamental e a realização de um grupo focal3 desenvolvido com doze educadores/as particularmente sensíveis ao tema das diferenças culturais na escola, identificados através das entrevistas individuais e da indicação de coordenadores pedagógicos e diretores de escolas. O grupo focal teve por finalidade ampliar o debate sobre as diferenças culturais presentes na escola, seu reconhecimento e desafios na perspectiva de trabalhá-las na dinâmica escolar. Integraram o grupo focal três professores e nove professoras. O grupo, bastante heterogêneo, estava constituído por profissionais recém formados e outros com ampla experiência de magistério, de diferentes áreas curriculares, com atuação no primeiro e segundo segmentos do ensino fundamental, assim como no ensino médio, na educação de jovens e adultos e no ensino superior. Vários possuíam experiência de coordenação pedagógica e direção escolar, assim como de desenvolvimento de projetos específicos nas respectivas instituições educacionais. Um aspecto considero de especial relevância: a grande maioria dos participantes havia tido e/ou continuava tendo inserção em diferentes organizações sociais, tais como organizações não governamentais que trabalham com questões de gênero e étnicas, grupos de cultura popular, grupos de estudo na universidade, pré-vestibulares comunitários, associações de moradores, entre outras. O roteiro do grupo focal abrangia dois blocos de questões: as relações entre diferença, sociedade e desigualdade e as diferenças no cotidiano escolar. Abordarei alguns aspectos explicitados no segundo bloco. Segundo Russo e Araújo (2009), integrantes do GECEC, ficou evidente nos depoimentos a angústia dos professores e professoras diante das dificuldades que enfrentam para vencer a tendência padronizadora dominante nas escolas, desde o número de alunos na sala de aula até a falta de estrutura, de recursos e de acompanhamento qualificado para lidar com uma realidade complexa e diferenciada. No entanto, afirmam, mesmo neste contexto, segundo os depoimentos dos professores, as diferenças estão “bombando” nas escolas, no sentido de que são cada vez mais explicitadas e desafiam as práticas educativas. Ao identificar e enumerar estas diferenças, os educadores empregam distintos conceitos de diferença, confirmando a polissemia do termo e, a partir deles, é possível, segundo as autoras categorizar as diferenças mencionadas em dois grupos: diferenças relacionadas à desigualdade e diferenças relacionadas à construção de identidade. É importante salientar que esta categorização apresenta um caráter fluido e deslizante, diferenças específicas podendo transitar entre elas. O primeiro grupo se relaciona diretamente com a concepção que tende a associar diferenças com déficit em relação ao padrão valorizado socialmente como “normal” e desejado pela escola.

Referem-se, em geral, às deficiências sensório-motoras e mentais, de ritmo de aprendizagem e de origem cultural e socioeconômica.

Quanto às estratégias que mobilizam para enfrentá-las, estão baseadas numa ideia negativa de diferença e, portanto, supõem que devem ser superadas no sentido de se viabilizar o alcance do padrão comum, socialmente reconhecido e capaz de garantir a inserção social dos alunos. 

Assinalam que esta visão é também, em muitos casos, a das famílias. Atividades de reforço e atendimento individual das necessidades específicas dos alunos para que possam vencer os déficits são mobilizadas sempre que possível, mas as condições disponíveis muitas vezes não o permitem, o que gera muita tensão nos educadores, assim como buscas de como articular igualdade, concebida como homogeneização, e equidade, que aponta para o reconhecimento da necessidade de diferenciação.

No segundo grupo de diferenças identificadas estão aquelas percebidas pelos participantes como alvo de discriminação e preconceito, diferenças que se referem, fundamentalmente, a questões de identidades étnico-raciais, de gênero, de opção religiosa e de orientação sexual. Para trabalhá-las parte-se de uma valorização positiva destas diferenças e são mobilizadas várias estratégias: aprofundamento da reflexão sobre diferenças específicas, desconstrução de visões estereotipadas de certas identidades, desenvolvimento da auto-estima, particularmente dos alunos e alunas que pertencem a grupos inferiorizados e objeto de discriminação e trabalhar os conflitos que emergem no cotidiano escolar.

Do ponto de vista dos dispositivos didáticos, o mais enfatizado foi o desenvolvimento de projetos de trabalho (Koff, 2009) temáticos, que podem assumir diversas configurações, ser realizados no contexto de uma determinada disciplina ou apresentar caráter interdisciplinar. 

Desenvolver uma temática ampla articulando distintas questões relativas às diferenças ou abordar temas específicos, como identidade negra ou orientação sexual, mesmo que mobilizem resistências e conflitos. Foi salientada a importância dos projetos se relacionarem com as experiências dos alunos e alunas, “tocar” as pessoas e envolverem a comunidade escolar. Portanto, não se trata somente de trabalhar o nível cognitivo, mas também o afetivo, atitudinal e comportamental. 

Também foram mencionados aspectos como a incidência dos projetos em modificações do currículo escolar, assim como a promoção do diálogo entre as diferenças para favorecer o reconhecimento da alteridade. No entanto, alguns professores salientaram que trabalhar as diferenças não pode ser reduzido ao desenvolvimento de projetos. É necessário assumir uma postura de valorização positiva das diferenças e combate às discriminações em toda a dinâmica escolar, o que exige um trabalho coletivo dos educadores, assim como espaços de formação continuada que abordem estas questões.

Considerações finais

Foi possível detectar nas pesquisas apresentadas, germens de práticas educativas mais sensíveis às diferenças que emergem com cada vez maior força e visibilidade no cotidiano escolar.

No entanto, convém ter presente que ainda é recorrente uma visão da diferença relacionada com a questão do déficit de aprendizagem, com forte ancoragem em aspectos psicológicos, assim como articulada ao nível socioeconômico dos alunos e alunas. Consequentemente, a diferença é vista como um problema a ser superado.

A lógica homogeneizadora, por sua vez, é identificada como predominante na cultura escolar e reforça esta perspectiva. Cabe a escola viabilizar a superação das diferenças e garantir o padrão comum estabelecido para todos e todas. No entanto, este padrão não é, em geral, posto em questão, problematizado, desconstruído e reconstruído no sentido de incorporar em sua própria concepção o reconhecimento das diferenças.

Também emerge dos depoimentos dos educadores, uma perspectiva em que as diferenças estão relacionadas às identidades culturais e concebidas como construções sociais, dinâmicas e históricas. A escola tem um papel importante na perspectiva de reconhecer, valorizar e empoderar sujeitos socioculturais subalternizados e negados. E esta tarefa passa por processos de diálogo entre diferentes conhecimentos e saberes, a utilização de pluralidade de linguagens, estratégias pedagógicas e recursos didáticos, a promoção de dispositivos de diferenciação pedagógica e o combate a toda forma de preconceito e discriminação no contexto escolar.

Tendo presente as reflexões que procurei desenvolver, é possível afirmar que ainda estamos longe de “instrumentalizar didaticamente a escola” para trabalhar com as diferenças, assim como de transformá-las em “vantagem pedagógica”, como propõe Emilia Ferreiro. Mas algumas buscas nesta direção estão presentes no cotidiano de nossas escolas. Nós, professoras e professores de didática e das demais disciplinas dos cursos de formação destes profissionais também estamos desafiados a trabalhar nesta direção, não somente teoricamente, mas incorporando esta perspectiva nas nossas próprias práticas pedagógicas.

Acredito ser esse o caminho a trilhar para a construção de uma escola verdadeiramente democrática e justa, o que supõe articular igualdade e diferença.

A dimensão cultural é intrínseca aos processos pedagógicos, “está no chão da escola” e potencia processos de aprendizagem mais significativos e produtivos, na medida em que reconhece e valoriza a cada um dos sujeitos neles implicados, combate todas as formas de silenciamento, invisibilização e/ou inferiorização de determinados sujeitos socioculturais, favorecendo a construção de identidades culturais abertas e de sujeitos de direito, assim como a valorização do outro, do diferente, e o diálogo intercultural. 

Esta tem sido uma busca que tem orientado muitas de minhas atividades nos últimos anos e também de inúmeros educadores e educadores que, desde o “chão da escola”, se atrevem a reconhecer e valorizar as diferenças presentes no seu dia a dia.

Notas 

1 Tanto Gimeno Sacristán quanto Emilia Ferreiro não distinguem diversidade e diferença utilizando estes termos como sinônimos. Referindo-se ao termo diversidade. Gimeno Sacristán (2001) distingue dez possíveis sentidos e afirma: “Dentro da pletora de significados que tem a diversidade, de acordo com o contexto discursivo e prático em que esta palavra se insere, na afirmação de sua necessidade se entrelaçam aspirações, críticas e propostas dos mais variados signos, que representam tendências ou derivações de perspectivas políticas, culturais e educativas variadas” (p.129).

2 As oficinas pedagógicas constituem uma estratégia metodológica baseada na articulação teoria-prática, que utiliza depoimentos e histórias de vida, emprega diferentes linguagens, promove o diálogo entre diversos saberes e conhecimentos, usa técnicas participativas e favorece a construção coletiva (CANDAU, 1995, p.117-118).

3 Para Krueger (1994) o grupo focal é uma técnica de entrevista, direcionada a um grupo que é selecionado pelo pesquisador a partir de determinadas características específicas, visando obter informações qualitativas. Neste sentido, é possível afirmar que suas principais características são: uma intencionalidade clara, um foco definido, e a constituição de um grupo selecionado a partir de alguma(s) característica(s) comum(ns), não sendo, portanto, um grupo espontaneamente formado.

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